Muito mais do que a oficialização, por lei, do ponto onde nasceu a cidade de Belo Horizonte, o Projeto de Lei PL 710/2023, de autoria do vereador Sérgio Fernando Pinho Tavares, poderá vir a ser uma reparação histórica da qual os primeiros habitantes da capital mineira foram vítimas. Os fatos históricos vieram à tona em audiência pública realizada no dia 19 de fevereiro de 2024, na Câmara Municipal de Belo Horizonte.
Na audiência, realizada pela Comissão de Meio Ambiente, Defesa dos Animais e Política Urbana por solicitação do vereador, especialistas explicaram que, ao planejar a nova capital, inaugurada em 1897, a equipe construtora desconsiderou o passado e a cultura do arraial e das pessoas que lá viviam. Na visão “modernista” da época, era preciso criar uma nova cidade, partindo do zero. Por causa disso, historicamente, os registros não valorizaram o fato de que a formação da cidade começou com o Arraial do Curral Del Rey e que no seu ponto de origem havia a primeira construção da cidade, uma capela em homenagem a Nossa Senhora da Boa Viagem.
Surpresa revelada: Beagá não tem um marco zero oficial
Este ponto foi amplamente abordado na audiência, que lotou o plenário Camil Caram com moradores do bairro Boa Viagem, padres e frequentadores da paróquia Nossa Senhora da Boa Viagem. Muitas considerações foram feitas, entre elas – apontada pelo representante da Secretaria Municipal de Cultura, o historiador Yuri Mesquita – de que não existe hoje em Belo Horizonte um marco zero oficial.
Funcionário do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte e representando a Secretaria Municipal de Cultura na audiência, Mesquita relatou que a Praça Sete, o complexo da Pampulha e a própria igreja da Boa Viagem são hoje os três locais classificados como marcos simbólicos de Belo Horizonte, sendo um quarto local, a Praça da Estação como marco topográfico, de onde são medidas as distâncias entre Belo Horizonte e as demais cidades brasileiras.
Participantes contribuem para a audiência
Compuseram a mesa os historiadores Márcia Grazzioni, Renata Cilene Alves, João Victor Ferreira, João Roberto de Souza, o padre Marcelo Carlos da Silva e o monsenhor Eugênio Barbosa Martins e o presidente da Associação de Moradores, Henrique Correa dos Santos. Todos contribuíram com informações e declarações importantes que reforçaram a importância de se fixar o marco zero onde o PL 710/2023 estabelece.
Para João Victor Ferreira, sociólogo e escritor de um livro sobre Belo Horizonte a discussão sobre o marco zero é “inócua”, pois se não existe uma lei, não se trata de destituir nenhum outro marco zero existente em Belo Horizonte. “Os outros pontos são meras referências sob outros pontos de vista”, ressaltou.
Segundo o padre Marcelo Silva, o complexo arquitetônico e paisagístico da Boa Viagem é uma “joia histórica” e que a defesa do patrimônio do qual a igreja faz parte, não é uma pauta religiosa. “Trata-se da defesa de um patrimônio da cidade e, uma vez que não há reconhecimento legal de nenhum ponto, porque não fazer jus à história? Para conceber uma cidade planejada, tiveram que eliminar uma vida inteira”, lamentou.
Padre Marcelo Silva também enalteceu o papel da Câmara Municipal, como casa do povo e um lugar legítimo para discutir uma retificação histórica. “A origem da cidade, para ser justa, precisa passar pela Boa Viagem, que teve um apagamento histórico.” E conclui dizendo: “com um pouco de boa vontade e diminuindo vaidades, dá para recuperar a história da Vila Curral Del Rei e Vila Belo Horizonte. A história não avança negando, mas reconstituindo e incluindo a verdade.”
A historiadora Renata Cilene Alves, responsável pelo dossiê que levou a criação do Projeto de Lei, contribuiu explicando detalhes de fatores históricos da época da criação de Belo Horizonte e destacou que não se pode negar a história. “A decisão de ter o marco zero em outro lugar foi elitista, porque a população da época era a grande maioria composta de pobres, pretos e pardos”, lembrou.
Já o presidente da Associação de Moradores do Bairro Boa Viagem, Henrique Correa dos Santos, enfatizou que há a necessidade de correção histórica, “porque sempre ao se voltar na história haverá essa pendência, haverá uma história mal contada.”
Atento, Monsenhor Eugênio Barbosa Martins resumiu sua fala dizendo que o PL vai promover um resgate histórico e também político e um resgate da memória de quem construiu a cidade “vivemos de memória e são elas que movem novas experiências.”
A historiadora Márcia Grazzioni foi precisa em suas observações sobre fatos da época e ao dizer que “se negamos a história de Belo Horizonte, estaremos negando as nossas próprias raízes”.
Depois das considerações dos participantes da mesa, diversas pessoas presentes puderam também questionar e fazer seus apontamentos sobre a questão.
Por parte do poder público municipal, somente compareceu, de forma on-line, o historiador Yuri Mesquita, do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, representando a Secretaria Municipal de Cultura. Também foram convidados para a audiência as secretarias de governo, Política Urbana, Fundação Municipal de Cultura, e o diretor de patrimônio do município, que não compareceram.
Mais do que um Marco Zero. Trata-se de fazer justiça à história
Muito mais do que a oficialização, o Projeto de Lei PL 710/2023, poderá se tornar uma lei que repara a histórica de Belo Horizonte, fazendo justiça aos primeiros habitantes do Curral Del Rey, que foram desconsiderados em sua cultura e costumes quando a nova capital foi inaugurada. Quiseram construir uma cidade moderna, “limpa”, novinha em folha, sem levar em conta que ali vivia uma população de gente trabalhadora, composta, em sua maioria, de pobres, negros e pardos. Na visão “modernista” da comissão construtora, era preciso criar uma nova cidade, partindo do zero. Por causa disso, historicamente, os registros não valorizaram o fato de que a formação da cidade começou com o Arraial do Curral Del Rey e que no seu ponto de origem havia a primeira construção da cidade, uma capela em homenagem a Nossa Senhora da Boa Viagem.
Projeto de Lei de deverá ser votado em março
O vereador Sérgio Fernando explicou que a audiência pública se fez necessária porque no dia em que o PL 710/2023 seria votado em plenário, no primeiro turno, o líder do governo na Câmara Municipal anunciou que a Fundação Municipal de Cultura tinha um entendimento diferente quanto à oficialização do marco zero na igreja da Boa Viagem. Como a informação colocaria em risco a aprovação do Projeto de Lei naquela data, a votação não foi realizada. Por esse motivo, a audiência pretendeu esclarecer a controvérsia entre o dossiê histórico e a alegação da Fundação.
O próximo passo previsto para a votação em plenário no próximo mês de março.
Pedido da comunidade da Boa Viagem
A criação do PL 710/2023 foi um pedido da comunidade do bairro Boa Viagem ao vereador Sérgio Fernando, que elaborou a argumentação, pautado no minucioso levantamento histórico, o mesmo que foi discutido e reforçado pelos especialistas na audiência pública.
Sérgio Fernando concluiu: “Nós, que começamos a audiência pública pensando em fazer um resgate apenas do ponto de origem, passamos pela questão do resgate e da correção de uma decisão elitista e também de um embate entre o barroco e o modernismo”.
Próximos passos:
Participe do abaixo-assinado clicando no link
Votação do primeiro turno da aprovação do Projeto de Lei Marco Zero (710/2023)
Dia: 3 de abril de 2024
Horário: 15h
Local: Câmara Municipal de Belo Horizonte | Plenário Amynthas de Barros
Endereço: Av. dos Andradas, 3.100, bairro Santa Efigênia